domingo, 4 de janeiro de 2009

O Feirante

Acordou cedo, como fazia todos os dias. Ainda se viam as estrelas decorando o céu bonito que emoldurava a pequena fazenda, O céu estava enluarado, do tipo que dá vontade de cantar uma moda de viola sentado a beira da fogueira com os amigos.
  A fazenda era simples, porém cuidada com muito carinho: uma pequena casa de pau a pique modesta, mas limpa, onde viviam ele, sua esposa e seus cinco filhos, o maior com sete anos e o menor ainda nos peitos da mãe.
 Ao lado da casa havia uma roça, onde plantava a comida do dia a dia, verduras e legumes variados que rendiam pro ano todo, e nos fundos da propriedade um pomar modesto onde colhia frutas diversas: goiaba, pitanga, sapoti, graviola jabotica, seriguela, genipapo e muitas outras preciosidades, este era o local da fazenda que mais gostava, lá, sempre que tinha um tempo, sentava ao pé de uma árvore, geralmente aquela que estivesse com os frutos de vez e ficava se deleitando com o cheiro daquelas frutas que entravam por suas narinas e lhe traziam imenso prazer, sentimento que era transformado em curtas orações de agradecimento a Deus.
 Mas naquela madrugada a lida era apressada, era dia de feira, onde vendia os poucos produtos que sobravam de sua fazenda, era com a escassa renda que comprava uma roupa para a mulher e as crianças e alguma coisa a mais para o dia a dia.
  A mula, que lhe servia de auxílio na longa caminhada semanal para a feira morrera poucos dias antes, pegou uma peste “braba” e não teve jeito, lhe sobrava agora apenas a sua força para encarar sozinho aquela jornada de quase dez quilômetros até a cidade.
Tomou um gole de café que acabara de fazer no coador de pano, comeu uma tapioca salgada que a mulher havia lhe preparado na noite anterior, no pequeno farnel levava um pouco de paçoca de carne de sol e farinha que seria o seu almoço daquele dia. Mordeu um pedaço de rapadura que lhe doeu os dentes da frente e lembrou-se do ditado: “Rapadura é doce mais não é mole não!” não entendeu bem por que lembrou disso.  Havia ao lado da mesa dois balaios unidos por um pedaço de madeira bem forte, com dois pedaços de couro velho e macio de cada lado, para amenizar o roçar da cangalha quando fosse  colocada nos seus ombros,  dentro de um balaio ia o genipapo colhido na sexta-feira, o cheiro da fruta se espalhava pela casa e ele lembrava dos tempos em que passou no pomar conversando com Deus e fazia uma curta oração bem baixinho enquanto arrumava suas tralhas. No outro balaio ia a farinha feita com a macaxeira no pilão velho de sua propriedade, e que ele guardava na fazenda para vender na feira.
 Colocou a botina no pé calejado e pôs a cangalha nos ombros, eram quase cinquenta quilos de peso, mas ele era forte, tinha aquela fortaleza adquirida na lida de sol a sol, construída no cabo da enxada.
   Seguiu na estrada de barro que levava até a cidade, a primeira hora foi tranquila o peso era muito, mas o cansaço ainda não era tão grande e a noite ainda cobria o seu caminho, mas aos poucos, como acompanhando os primeiros raios de sol, se ouvia o som dos pássaros, bem perto um curió dava seus gorjeios suaves, e aquela melodia lhe dava alegria e animo para continuar a caminhada.
 Quando  o sol se apoderou da escuridão, já se via no matagal a festa dos papa-capins e na copa das arvores os periquitos tuins fazerem a bagunça característica e isto lhe enchia o coração de esperança mesmo com peso que já começava a cansar suas costas tão sofridas, o couro macio nas hastes da cangalha parecia não fazer mais efeito algum e a dor já lhe fazia companhia na caminhada.
  Para descansar um pouco baixou a cangalha no chão e pensou na vida sofrida que levava, uma lágrima tentava rolar de seus olhos e era logo impedida pela sua dureza da roça, olhou então à frente, no topo de uma velha árvore, na beira da estrada, um casal de joão de barro, seu ninho simples e bem construído , e seu filhotinho já quase na época de dar ou seu primeiro vôo, pensou em sua família e novamente agradeceu a Deus de forma silenciosa. Pôs a cangalha na cacunda já ferida e seguiu seu caminho.
  Em pouco tempo o sol , antes suave, já lhe ardia a nuca e a testa , apesar do chapéu de palha a lhe cobrir a fronte. Olhou para o céu como a admirar, mas na verdade estava preocupado com o movimento das nuvens que indicava que viria chuva, e olha que em prever chuva ele era bom, sabedoria aprendida com seu falecido pai, pensou então em adiantar o passo já que carregava farinha no balaio e se pegasse chuva a farinha molhada não serviria mais para nada, “farinha boa se molhar não presta!”, e isto já havia acontecido algumas vezes e era sinônimo de falta de carne na mesa naquela semana, orou baixinho como de costume e prosseguiu sua dura jornada, agora de forma mais apressada e dolorida.
   Três horas de sofrimento pela longa caminhada com tanto peso nas costas se desfizeram como por milagre quando entrou na cidade e ainda cedo ajustou seus produtos no chão da pequena feira, a chuva foi só ameaça graças a Deus e não espantou o povo da feira, assim em pouco tempo a feira estava cheia de gente, com cantadores com seus cordéis já emitiam os primeiros versos que espalhavam poesia naquele ambiente de gente tão sofrida.
  Passado o dia, chegando o fim da feira, a farinha e o genipapo já estavam vendidos. Ele já havia comprado um vestidinho bonito pra mulher, umas peças pras crianças e algumas coisas a mais.
 Então como de costume foi até a barraca verde e enfeitada de forma vistosa no final da feira, que era de um compadre seu, um homem sorridente e com aparência de bonachão.
   Após uns dedos de prosa o homem lhe ofereceu que escolhesse um dos doces de sua quitanda, e ele pegou um sonho de açúcar mascavo embrulhado cuidadosamente num papel de seda azul, seus olhos se encheram de brilho, suas forças retornavam e como num filme de cinema se lembrou de toda aquela jornada da fazenda até a feira, passou a mão nas feridas em suas costas, a dor ainda se fazia presente, mas mesmo assim um sorriso lhe veio nos lábios ao mesmo tempo que mordia o primeiro pedaço do sonho.
 Naquele momento toda sua vida e aquela dura jornada se cobriam de sentido e ele mais uma vez em silêncio agradeceu a Deus.

(Baseado na canção "O Feirante" gravada por João Alexandre)

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